Helena T. é uma carioca que vive entre Lisboa e São Paulo, cidade onde se formou em Psicologia e criou família. Escreveu uma série de livros destinada ao público infantil, entre eles, O dia em que Leopoldo Eugênio Augusto de Roquefort, rei L.E.A.R., quase perdeu a majestade, com que estreou na Rua do Sabão. Um dos contos de Máscara para um rosto nu, de 2019, (Degustar) foi escolhido para participar da coletânea O corpo descoberto, organizada por Eliane Robert de Moraes, com o selo do Suplemento Pernambuco (Cepe), reunindo grandes contos eróticos do modernismo aos dias atuais, como parte das comemorações pelos 100 anos da Semana de 22.
Uma da manhã e finalmente você entra, há uma semana que a garçonete não o via. De trás do balcão, ela se apressa a pegar a jarra de café e se dirige à mesa onde você está, a mesa de sempre. Nervosa, derrama um pouco de café na toalha quadriculada vermelha e branca. Você nem a olha, parece hipnotizado pela fumaça que sobe da xícara.
Mais alguma coisa? – ela pergunta, e não há resposta. Não se surpreende, você é assim, tem o seu tempo, suas razões, que para ela são difíceis de alcançar. Não quer desvendá-lo, prefere o mistério e as pequenas revelações que lhe chegam aos poucos. Se afasta, espera.
Você faz um sinal, quer um conhaque. Ela vai buscar a bebida, você a acompanha com os olhos, ela acha que você a reconhece, mas não tem certeza.
No bar, o dono da lanchonete serve o conhaque, a garçonete pega o copo sobre o balcão e traz até você. Espera, mas você não se dirige a ela, que se afasta um pouco, não muito, para o caso você chamá-la de novo, vira de lado com o rosto voltado para uma janela no primeiro andar do prédio do outro lado da rua. Dali ela enxerga o apartamento onde mora, a cortina está aberta, o néon do letreiro da lanchonete invade o quarto e põe cor no seu colchão – azul, vermelho, azul, vermelho. Você se lembra?
O patrão, que está atrás da bancada do bar, chama por ela e a tira do devaneio. Faz um sinal com a cabeça em direção a um freguês que dorme apoiado sobre a mesa. Dorme ou está desmaiado, não dá para saber. Não fui contratada para afastar bêbados, ela tem vontade de dizer, mas se cala como vem fazendo. Engole desaforos para continuar no emprego. Seu único alvo é juntar dinheiro e voltar para sua terra, escapulir dessa cidade de onde só guarda desilusões e o cheiro de lixo.
Atende à ordem, vai até a mesa onde o sujeito está caído e o sacode pelos ombros uma, duas vezes, ele resmunga e nem se mexe. Com raiva e asco, ela tenta erguê-lo, enfiando seus braços por debaixo dos dele, um boneco pesado e mole, quase a derruba. De repente, o freguês se apruma e se livra daquele estranho abraço, segue cambaleante a esbarrar nas mesas e cadeiras, ela vai atrás e o ajuda a sair pela porta. Que o ar frio o guie, diz.
Da calçada, ela vê você atravessando a rua. A frustração se junta à raiva, chega a bater o sapato no piso como criança, tem vontade de gritar, tanto é o ódio. Malditos sejam você e o patrão – enquanto ela resolvia a encrenca com o homem você acertou a conta direto com ele.
Está farta dos bêbados, desse emprego da bosta, das gracinhas do patrão, dos fregueses abusados e de você, que brilhou em azul e vermelho na sua cama e atravessou a rua sem esperar por ela.
Volta para dentro da lanchonete, já passou da hora de fechar, o dono conta o caixa com olhos de gavião, quase saliva de prazer ao alisar os cheques, as notas, juntar os talões dos cartões de crédito. Cretino, ela pensa.
Já vai belezura? – diz. Ela ignora. Uma e meia da manhã, queria mais, o imbecil? Termina de limpar a cozinha, tem pressa em cair fora do lugar e nem troca o uniforme, pega a bolsa e vai saindo. O patrão está na porta à sua espera para trancar a lanchonete. É obrigada a passar pelo vão estreito entre corpo dele e o batente. Recebe um apertão na bunda, ele tem um sorrisinho sacana. Aquilo a enche de fúria, agarra o pescoço dele com as duas mãos, aperta. Vou deixar uma faca no bolso do avental pra enfiar na sua barriga nojenta se fizer isso de novo, avisa, com os dentes trincados. E lhe dá um empurrão.
Sai dali rindo da cara de assustado que ele faz. Não sabe como será amanhã, se vai ser despedida ou não, mas suspeita que estará mansinho. O cão asqueroso não morde.
Atravessa a rua amarelada pela luz do poste da esquina. Volta a reparar como o néon da lanchonete brilha na parede do prédio bem na altura da sua janela no primeiro andar. Alguém está recostado na entrada, o rosto na penumbra. Só percebe que é você ao chegar perto. Você lhe oferece o cigarro que havia acabado de tragar, ela aceita, traga também e o devolve, não deixam de olhar um para o outro, desafiantes. Ela sobe na frente e abre a porta do apartamento. Entram, o quarto e a cama mudam de cor:
vermelho, azul, vermelho, azul.
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Mais sobre a obra
Os contos escritos por Helena T. agem no leitor feito o traço escuro no papel que, ao se empunhar um estilete, tanto serve de guia para criar enfeites, como para abrir feridas. Em ambos os casos, cumprem sua função literária de intervir nas sensações do leitor, recorrendo a uma linguagem poética que, ao acusar verdades, também assopra.
Depois de se dedicar a publicações para o público infantil, Helena T. se firma no território de textos adultos, fustigando o imaginário do leitor com cenas cotidianas mostradas pelo avesso.
Dali ela enxerga o apartamento onde mora, a cortina está aberta, o néon do letreiro invade o quarto e põe cor no seu colchão – azul, vermelho, azul, vermelho.
A escritora britânica Virgínia Woolf escreveu que ler um bom livro “…parece realizar uma operação de catarata em nossos sentidos, enxerga-se com mais intensidade; o mundo parece despir sua capa e receber uma vida mais intensa.”
É assim com Luz de Néon.
Foto de Luísa Machado.